Análise Um momento da história em perspetiva

J.-M. Nobre-Correia, professor emérito da Université Libre de Bruxelles (ULB)

Nos meses e anos logo após o 25 de Abril, o sector da imprensa “nacional” foi quase inteiramente destroçado. O que não aconteceu noutros países europeus em situações relativamente comparáveis…

“Aquele jornal veio a ser, durante cerca de oito meses,
um insólito fenómeno que muita gente não foi capaz de compreender
e muito menos aceitar” [1],
José Saramago, diretor-adjunto do Diário de Notícias
de 10 de abril a 25 de novembro de 1975.
Ao que parece, não se pode dizer que houve um “maremoto que devastou o sector da imprensa após o 25 de Abril”. E, por conseguinte, que “as ocupações das empresas jornalísticas, os saneamentos, as nomeações partidárias para postos de direção editorial e administrativa, a sucessão de orientações políticas diferentes e mesmo opostas, fizeram que as empresas editoras e os jornais existentes no tempo do salazarismo fossem arruinados e desaparecendo uns atrás dos outros” [2].

Ora, precisamente, é afrontando a realidade nua e crua que se poderá tentar compreender uma das “razões que explicam a miséria” em que se encontra a imprensa portuguesa. E o enquadramento do pós-25 de Abril numa perspetiva histórica europeia talvez permita melhor compreender que se possa fazer o diagnóstico que foi avançado.

A continuidade britânica e a rotura alemã

É claro que as situações históricas nunca são idênticas de um país para outro, nem os acontecimentos quando eles próprios estão distanciados de algumas dezenas de anos. Mas, na Europa ocidental, situações houve que tiveram aspetos algo comparáveis aos da queda/libertação do salazarismo e da movimentação/revolução social que se lhe seguiu. Assim, em meados dos anos 1940, as situações de países que acabavam de sair da Segunda Guerra Mundial e viviam as alegrias e as preocupações da Libertação : a Grã-Bretanha, a Alemanha, a França e a Itália [3]. E uma trintena de anos mais tarde, em Espanha, a transição da ditadura para a democracia parlamentar [4].

Na Grã-Bretanha, onde não houve presença de tropas estrangeiras durante a guerra, os jornais continuaram a sua atividade normal após o cessar fogo, ultrapassadas as dificuldades de produção e de distribuição habituais dos tempos de guerra. Muito embora alguns diários célebres se tenham mostrado abertos a concessões para com a Alemanha nazi (como The Times), sido particularmente favoráveis ao regime hitleriano de Berlim ou tenham mesmo apoiado claramente a British Union of Fascists durante algum tempo (como o Daily Mirror e o Daily Mail).

Após a guerra, os leitores britânicos ficaram fiéis aos “seus “jornais e, como acontece sempre em tempos de libertação, as difusões até aumentaram durante alguns anos. A crise das vendas só atingiu os diários populares no início dos anos 1950 e os diários de gama média em meados desse decénio, enquanto os diários de referência foram aumentando as suas difusões durante alguns decénios mais. Sete dos dez diários generalistas ditos nacionais atualmente publicados em Londres existiam já antes da guerra e mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, com exceção do Daily Star lançado em 1978, de The Independent em 1986 e do título irmão I em 2010, sendo o The Sun o título que substituiu em 1964 o Daily Herald lançado em 1912 [5].

Quando Adolf Hitler chegou ao poder na Alemanha em 1933, o país contava 4 703 “zeitungem”. Em 1934, subsistiam 2 527 e em 1939 apenas 2 288 (este último número compreendendo também os publicados na Áustria anexada pelo Reich em 1938). Por outro lado, em 1939, a editora do partido nazi, a Eher Verlag, controlava dois terços dos jornais, enquanto que em 1944 detinha já 82,5 % [6].

No após guerra, a situação da imprensa caraterizou-se pela tábua rasa total imposta pelos Aliados. Todos os média existentes antes foram pura e simplesmente proibidos. Para criar um novo jornal, o interessado deveria obter previamente uma licença atribuída pelos Aliados na sua zona de ocupação respetiva. Para obtê-la, deveria provar não ter estado comprometido com o regime nazi. E esta foi a situação que durou até à criação da República Federal da Alemanha em 1949 [7].

Num clima de destruição geral e de escassez de mão de obra, esta situação foi particularmente benéfica ao desenvolvimento ulterior da imprensa alemã. Favorecendo o aparecimento de empresários desejosos de afirmar como editores na nova cena mediática e democrática. Favorecendo ainda a criação de instalações mais modernas e adequadas às novas necessidades, evitando entraves e encargos de edifícios que datavam por vezes do século precedente. Favorecendo também a constituição de equipas mais reduzidas, nomeadamente no plano técnico, o que permitiu na devida altura que a imprensa não fosse entravada no seu desenvolvimento “por pressões malthusianas dos sindicatos operários e lançar-se sem entraves na senda da automatização” [8]. Consequência desta história : todos, absolutamente todos os jornais alemães atuais foram lançados durante os últimos 70 anos.

A indulgência italiana e o radicalismo francês

A estas situações britânica e alemã diametralmente opostas, contrapõem-se as situações na Itália e na França, aliás também diferentes entre elas. Na Itália, nove meses apenas depois da chegada de Benito Mussolini ao poder, em 1922, os prefeitos viram-se atribuir “a faculdade de notificar e destituir o gerente de uma publicação no caso de entrave à ação diplomática do governo em política internacional, de instigação ao ódio de classe e à desobediência às leis, de conivência com interesses estrangeiros, de ultraje à pátria, ao rei e à família real, ao papa, à religião de Estado, às instituições e às potências amigas” [9]. Uma formulação extremamente larga que abre evidentemente a porta a todos os abusos da parte da administração pública.

Muito rapidamente, a imprensa é fascisada, posta ao serviço do regime. Uma série de diários importantes passarão a ter diretores fascistas logo em 1923. O mesmo acontecerá à agência de informação Stefani em 1924 e aos dois grandes diários de referência La Stampa, de Turim, e Corriere della Sera, de Milão, em 1925. No caso de La Stampa, o proprietário será mesmo obrigado a ceder a propriedade à família Agnelli, sua atual proprietária e principal acionista (então como agora) do construtor automóvel Fiat.

Quando o fascismo e a monarquia foram derrubados, após um período de hesitação, a maioria dos diários italianos fascisados por Mussolini são de novo publicados [10]. Não houve na Itália um movimento de saneamento radical à maneira do operado na Alemanha, nem mesmo um saneamento mais ou menos contrastado como em França. Praticamente todos os grandes diários atuais das grandes cidades italianas continuaram a ser publicados durante o fascismo. O Corriere della Sera e La Stampa são ainda hoje o primeiro e o terceiro diário de referência, sendo La Repubblica, de Roma, lançado em 1976, o segundo (embora na região de Roma seja Il Messaggero, lançado em 1878 que continua a vender mais).

Em França, depois da guerra, foram tomadas decisões radicais que afetaram fortemente, e de maneira bastante negativa e definitiva, o nível de difusão da imprensa diária. Esquematicamente, durante a Segunda Guerra Mundial parte da imprensa francesa decidiu continuar a ser publicada sob a ocupação e a colaborar com o ocupante alemão. Outra seguiu o governo do marechal Philippe Pétain que, em junho de 1940, instaura um regime conservador ditatorial de colaboração com o ocupante em Vichy, numa “zona sul” que será ocupada em novembro de 1942. Enquanto que uma imprensa clandestina começa a aparecer em fins de 1939.

A ocupação teve como consequência o desaparecimento de quase 80 % dos títulos existentes antes da guerra em França. E, chegada a Libertação, as disposições (“ordonnances”) de 1944 do governo provisório do general Charles de Gaulle “sobre a organização da imprensa francesa” foram postas em aplicação : as publicações editadas em França ocupada, sob controlo alemão, são suprimidas ; para poder lançar uma publicação é preciso dispor de uma autorização oficial (medida aplicada até fevereiro de 1947) ; as autorizações prévias são atribuídas em prioridade 1. às antigas publicações editadas na clandestinidade, 2. às antigas publicações que se tinham cessado atividade e tinham por conseguinte renunciado a aparecer no tempo da ocupação, e 3. às equipas redatoriais patrocinadas pela Resistência que desejam tomar a iniciativa de criar uma nova publicação [11].

Por conseguinte, a reorganização do sector da imprensa no pós-Libertação é concebida sobretudo a partir de considerações de caráter político. Desde logo, a imprensa não toma a dimensão industrial e comercial que a continuidade permitiu dar à imprensa britânica. Nem a que uma situação de rotura favoreceu na Alemanha. Tanto mais que, para impedir qualquer movimento de concentração, é proibido que uma só pessoa possa dirigir mais de um diário.

Editores e equipas de jornalistas procuraram ultrapassar a situação de perplexidade e desconfiança dos leitores, lançando títulos de natureza a fazer compreender aos leitores que se tratava do mesmo jornal de antes, embora com um nome diferente : France-Soir ocuparia assim o lugar do antigo Paris-Soir (o maior diário do período entre as duas guerras), Le Parisien Libéré (hoje apenas Le Parisien) o de Le Petit Parisien ou Le Monde o de Le Temps (utilizando neste caso não a mesma palavras mas os mesmo carateres góticos do logótipo).

Da transição espanhola às constatações gerais

Uma trintena de anos depois, uma situação em certos aspetos comparável pôr-se-á com a morte do ditador Francisco Franco em 1975 e a transição gradual para um regime democrático em Espanha. Mas, ao contrário dos quatro países evocados precedentemente, a Espanha não se encontrava num grau de miséria mais ou menos elevado e até mesmo transformado em campo de ruínas provocado pela guerra. Pelo que, se bem que os diários publicados no tempo do franquismo continuassem globalmente a ser publicados, outros foram lançados e passaram até nalguns casos a ser os mais vendidos : os jovens El País (lançado em 1976) e El Mundo (1989), seguidos dos anciãos La Vanguardia (1881) e ABC (1903), mas também dos novos El Periódico (1978) e de La Razón (1998), que ocupam atualmente, e por esta ordem, as seis primeiras posições em termos de difusão.

Ora, em 1940 tinha sido criada a Cadena del Movimiento com 35 jornais [12] confiscados pelo franquismo aos seus antigos proprietários republicanos. As 22 publicações ainda detidas pelo Medios de Comunicación Social del Estado (que havia sucedido à Cadena del Movimiento) foram postas à venda em 1982-84 : 17 foram cedidas a particulares em leilão, as outras 5 não encontrando compradores (nomeadamente Pueblo, órgão dos sindicatos verticais) [13].

Esta passagem em revista de dois momentos da história em quatro países, em fins dos anos 1940 início dos anos 1950, no primeiro caso, e num quinto país, em fins dos anos 1970 início dos anos 1980, no segundo caso, permite tirar as seguintes conclusões :

  • numa situação de libertação de uma guerra, de uma ditadura ou mesmo de uma ditadura em guerra, os cidadãos sentem uma grande necessidade de informação sobre as realidades do presente e sobre as perspetivas do futuro. O que provocava sempre um aumento considerável das difusões do jornais, em momentos da história onde os jornais em papel dominavam ainda largamente a cena mediática da informação jornalística.
  • a imprensa que se encontrava em melhores condições para explorar esta situação de interesse pela informação foi a britânica, que continuou serenamente o seu caminho editorial, industrial e comercial. Mas também a italiana que, para além de uma agitação de curta duração, pôde voltar ao encontro dos seus leitores habituais. E, numa situação totalmente oposta, a imprensa alemã que pôde criar novos jornais tomando em consideração as novas configurações socioeconómicas do “leitorado”, assim como as novas condições técnicas e humanas de produção e de gestão dos jornais.
  • o radicalismo adotado pelo governo provisório do general Charles de Gaulle em França provocou uma rotura brutal na relação de grande parte dos leitores com a imprensa, tendo os “seus” jornais habituais desaparecido. E as tentativas de adaptação de nome, grafismo ou estilo não foram manifestamente suficientes para recuperar o elo de conivência dos leitores com os novos jornais.
  • o caso espanhol situa-se, uma trintena de anos mais tarde, num contexto socioeconómico totalmente diferente do dos outros países evocados e num contexto mediático igualmente diferente, as rádios públicas e privadas usufruindo então de uma grande audiência e a televisão assumindo já um papel de informação de uma certa importância.
  • em todos os casos se constata uma grande fidelidade dos leitores aos “seus” antigos jornais, do momento em que estes assumem uma certa continuidade editorial adaptada aos novos tempos, à nova situação democrática. Quantas vezes o “velho” jornal é aquele que já era lido pelos pais e mesmo pelos avós, e faz parte de certo modo do quadro tradicional da família do leitor ?! Os novos jornais, por seu lado, conquistaram geralmente leitores junto de públicos que antes não liam jornais, dado o sentimento de desconfiança e de hostilidade que estes suscitavam no tempo da guerra ou da ditadura.
A nefasta singularidade portuguesa

Em Portugal, após o 25 de Abril e a Libertação da ditadura salazarista, o mundo da imprensa foi confrontado a situações diferentes [14]. A quase totalidade dos diários ditos “nacionais” tinham passado sob o controlo dos bancos nos últimos anos do salazarismo. O que significava que, de certo modo, os editores no sentido forte (antigo e etimológico) da palavra, para além de eventuais insuficiências técnicas e de mais que prováveis alinhamentos políticos com o regime deposto, não detinham o poder real nas empresas. Enquanto que o novo poder político vagueava ao sabor das ondas mais diversas e contraditórias, num clima de incertezas que durou não apenas do 25 de Abril ao 25 de Novembro, mas durante alguns anos mais [15]. E, ao sabor das vagas montantes, as direções de diários e semanários foram-se sucedendo umas atrás das outras e as relações de forças no seio das empresas modificando, provocando desarticulações das redações, roturas de tom, de alinhamento político e de projeto editorial mais ou menos vago, atrasos e irregularidades na distribuição dos jornais por causa de plenários intermináveis e até convites do próprio Sindicato dos Jornalistas para que os leitores “boicotem” um jornal !…

Socialisante um dia, comunisante no outro, otelista no terceiro, emeerepumpista ou udêpista ou outra coisa no género de vez em quando, pêpêdista chegada a altura e até mesmo cêdêsista, os jornais foram desorientando e irritando seriamente os seus leitores tradicionais e até mesmo os novos interessados por uma atualidade crepitante. Enquanto que a continuidade indispensável no leme da empresa e da redação foi durante demasiados anos de demasiada curta duração. O suficiente para que os leitores fossem fundido como neve ao sol, provocando a morte inevitável de uns e a queda de outros no inferno da fragilidade condenatória. Quedas raramente reversíveis, os leitores tradicionais abandonando descontente o “seu” jornal, enquanto os que não são habitualmente seus leitores não se sentem suficientemente motivados por “novas fórmulas”, tendo ancorado no mais profundo dos seus inconscientes a imagem de um jornal que nunca lhes agradou e tem para eles uma má imagem de marca. A missa estava dita e nos órgãos da catedral mediática soava já um formidável requiem particularmente preocupante para a vitalidade da democracia…



[1] José Saramago, Os Apontamentos, Lisboa, Caminho, 1990, p. 194.
[2] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Razões que explicam a miséria », in Notas de Circunstância, n° 6, fevereiro de 2014.
[3] J.-M. Nobre-Correia, Histoire des Médias en Europe, vol. 2, Bruxelas, PUB, 2010, pp. 213-225.
[4] J.-M. Nobre-Correia, Histoire des Médias en Europe, vol. 1, Bruxelas, PUB, 2010, pp. 169-171 ; J.-M. Nobre-Correia, Histoire des Médias en Europe, vol. 2, pp. 273-276.
[5] Colin Seymour-Ure, The British Press and Broadcasting since 1945, Oxford, Blackweel, 1991, pp. 16-59.
[6] J.-M. Nobre-Correia, Histoire des Médias en Europe, vol. 1, p. 167.
[7] Dennis L. Bark e David R. Gress, Histoire de l’Allemagne depuis 1945, Paris, Robert Laffont, 1992, pp. 149-159.
[8] P. Albert, Histoire de la presse, 11a ed., Paris, PUF, 2010, p. 116.
[9] G. Gozzini, Storia del giornalismo, s.l., Bruno Mondadori, 2000, p. 220.
[10] Paolo Murialdi, La Stampa italiana dalla Liberazione alla crisi di fine secolo, Roma-Bari, Laterza, 1998.
[11] Patrick Eveno, Histoire de la presse française, Paris, Flammarion, 2012, pp. 175-191.
[12] A que se juntavam 45 estações de rádio, vindo em 1945 a acrescentar-se-lhes a nova agência de informação Pyresa (Periódicos y Revistas Españoles, Servicio de Agencia).
[13] Alejandro Pizarroso Quintero, De la Gazeta Nueva a Canal Plus, Madrid, Editorial Complutense, 1992, pp. 206-210 ; Juan Francisco Fuentes e Javier Fernández Sebastián, Historia del periodismo español, Madrid, Editorial Sintesis, 1997, pp. 317-335.
[14] J.-M. Nobre-Correia, "Histoire et actualité de la presse portugaise", in Trimedia, Lille, n° 5, novembro 1978, pp. 18-22.
J.-M. Nobre-Correia, "Los medios de comunicación portugueses de la dictadura a la demo­cracia", in Telos, Madrid, n° 49, março-maio 1997, pp. 20-29.
J.-M. Nobre-Correia, "Les médias portugais, de la dictature à la démocratie", in Médiaspouvoirs, Paris, n° 1 (nova série), 4° trimestre 1997, pp. 37-47.
[15] Só os responsáveis de um diário decidiram eles mesmos que o jornal deixava de ser publicado : Novidades. O episcopado considerou com efeito “não ter condições para continuar com o jornal que se extinguiu com o número 26 146, de sexta-feira 3 de Maio de 1974” (Mário Matos e Lemos, Jornais diários portugueses do século XX, Coimbra, Ariadne Editora-Ceis 20, s. d., p. 471). O episcopado tinha boas razões para deixar de publicar um diário que servira de apoio ideológico constante ao salazarismo, traduzindo apenas aquele que foi o apoio do episcopado ao Estado Novo : Ver a este propósito Duncan Simpson, A Igreja Católica e o Estado Novo salazarista, Lisboa, Edições 70, 2014, 308 p.