Reflexão A reforma do sistema

Luís Pita Ameixa, deputado pelo círculo de Beja

Em matéria de governo autárquico, a Constituição procurou resolver um equilíbrio político que redundou em disfuncionalidades evidentes. Mas há alternativas para evitar tais disfuncionalidades…

Aqui mesmo, nesta revista em linha, J.-M. Nobre-Correia tem avançado numas incursões teóricas em matéria de organização política e eleitoral, mormente no âmbito do poder local, deveras interessantes e estimulantes. Foi o caso dos seus textos “Democratizar o sistema”, no número 1 da Notas de Circunstância, e “Dar coerência ao sistema”, no número 5.

Se é verdade que sobre o primeiro desses textos é mais difícil de obter concordância (veja-se, desde logo, a critica de Luís Lourenço, “Melhorar o sistema”, publicada no número 3, merecedora da nossa simpatia em alguns aspetos), já o texto “Dar coerência ao sistema” vem levantar questões da maior importância para algumas disfuncionalidades dos sistemas de governo autárquico.

Defeitos que podem e devem ser sanados

A nossa Constituição – certamente para resolver um equilíbrio político — permite que o órgão executivo das autarquias locais possa ser constituído por duas formas diferentes, deixando ao legislador ordinário a respetiva escolha. No Título VIII da lei fundamental, relativo ao poder local, reza o artigo 239º (Órgãos deliberativos e executivos), o seguinte : “(…) 3. O órgão executivo colegial é constituído por um número adequado de membros, sendo designado presidente o primeiro candidato da lista mais votada para a assembleia ou para o executivo, de acordo com a solução adoptada na lei, a qual regulará também o processo eleitoral, os requisitos da sua constituição e destituição e o seu funcionamento. (…)”

Atualmente ambos os sistemas de governo autárquico estão em vigor : nas freguesias o órgão executivo é constituído na Assembleia (exceto o presidente) ; nos municípios o órgão executivo é constituído por eleição direta, do mesmo modo que o deliberativo. E ambos os sistemas comportam defeitos que podem e devem ser sanados.

Nas freguesias o principal problema é a suscetibilidade de impasse, que pode ocorrer quando a proposta de constituição do órgão executivo, apresentada pelo presidente da Junta, não tem apoio suficiente na Assembleia para ser eleita.

Nos municípios a incoerência está em que a Câmara Municipal (o executivo) tem a mesma legitimidade política constitutiva da Assembleia Municipal (o deliberativo e fiscalizador). Ademais os vereadores constituem-se, tipicamente, como uma assembleia plural… tal como a Assembleia Municipal. Duas assembleias em cima uma da outra, duas legitimidades diretas, duas pluralidades representativas, duas maiorias políticas diferentes, vereadores em coligação forçada ou em mera obstaculização num executivo, o líder da oposição vereador subalterno…

O sistema de governo das freguesias é, na verdade, mais coerente (e equipara-se ao que ocorre no sistema de governo nacional ou das regiões autónomas e, em geral, no mundo que distingue assembleia deliberativa de órgão executivo) e apenas precisa que se defina melhor a competência do presidente da Junta de Freguesia na escolha dos vogais e a natureza dessa escolha que deve ser mais política do que pessoal.

Um só voto para cada uma das autarquias

Aprofundemos agora a questão municipal. O sistema de governo municipal tem de ter o seu alicerce fundamental na Constituição da República. E, depois, na lei eleitoral, que tem valor reforçado. Finalmente, será densificado no conglomerado de atribuições e competências da lei geral.

Na base da arquitetura fundacional, que tem a ver com o sistema eleitoral, tem de estar a ideia democrática, escorreita, de que aos eleitores devem ser dadas hipótese de escolha entre propostas políticas diferentes, e que, a que for feita, não deve ser defraudada. Isto é, quando pede um voto ao cidadão, o sistema democrático, tem de lhe dar a contrapartida de que quem ganha, quem é escolhido, vai governar e, pela sua governação, será responsabilizado. E, em democracia, é mister, também, que se lhe garanta que quem não ganha não tem o direito de governar, mas não é silenciado, que pode defender ideias diferentes, pode exercer oposição, deve construir alternativas, em vista das próximas eleições, e que tem o direito de participar na fiscalização do exercício do poder.

Em caso de não existirem vitórias (nem, correlativas, derrotas) claras, verificando-se uma divisão expressiva na sociedade, sendo a escolha menos óbvia, então, excecionalmente, admita-se que as diferentes propostas políticas se entendam, para um dado período de governação. Mas não à força. Que o façam com transparência, usando a sua responsabilidade, em liberdade democrática.

Com um novo e coerente sistema, os eleitores deverão beneficiar da clareza e simplificação de expressarem um só voto para cada uma das autarquias : votarão apenas para a Assembleia de Freguesia (como já ocorre) e apenas para a Assembleia Municipal, sabendo que o primeiro membro dessas respetivas listas terá a responsabilidade de presidir ao órgão executivo, formado este por vogais/vereadores da escolha do presidente mediante o sancionamento político-programático da Assembleia.

Com um verdadeiro órgão executivo pode diminuir o número de vereadores e, consequentemente, sanar-se-á a confusão sobre o papel destes na administração autárquica, e ainda se restringem as despesas públicas. A Câmara homogénea ganhará — e muito — em eficiência e eficácia na sua ação.

A possibilidade nova de remodelação do executivo, a todo o tempo (só possível se os vereadores não forem eleitos diretamente), permite adaptar o órgão a novas dinâmicas, e salvaguardar melhor o interesse público muitas vezes prejudicado por distorções ou conflitos internos. A oposição tem de ser e estar livre, para se poder constituir em uma potencial alternativa, verdadeira e viva. É fora dos compromissos ou peias do órgão executivo que a oposição melhor fiscaliza e controla a atividade municipal. Não dentro dele !

Num novo contexto a lei deve promover ganhos de controlo e fiscalização, ao nível da Assembleia Municipal, indo até ao limite máximo da moção de censura. Em suma, se às maiorias cabe governar com o seu programa, sem margem para confusões nem desculpas, responsabilizando-se inteiramente perante os eleitores, não é menos certo que as oposições têm de ser livres e de preferência fortes. Mas fortes como alternativa política e eleitoral, não no trabalho dos executivos, porque aqui, verdadeiramente, só são úteis se fracas.


O titulo, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.