Análise Nas ondas da raia espanhola

Jorge Manuel Costa, jornalista e produtor multimédia

Apesar do desinteresse dos nossos média pelo país vizinho, Portugal sobressai nas rádios e televisões deste, em particular nas da Estremadura, principais promotoras em Espanha da música, língua e cultura lusas…

Diz a lenda que, para escapar aos ataques mongóis, a cidade russa de Kitezh se afundou no lago Svetloyar, onde permanence invisível. Sendo a rádio uma fábrica de utopias como a do mar interior que dá forma à raia luso-espanhola, é na “estranha poesia das coisas vulgares” que cada um pode encontrar a sua polis ideal, mote do “La Ciudad Invisible”, ex-magazine cultural da Radio 3 da Radio Nacional de España.

Se para as populações vizinhas as visões próprias dos territórios de transição e das culturas periféricas se concretizam nos gestos do quotidiano, para o cidadão afastado da fronteira materializam-se através dos meios de comunicação cujo sinal viaja entre os dois países. E ainda que a internet se tenha convertido na principal plataforma de distribuição, rádio e televisão continuam a ser um elo fundamental para as povoações ibéricas com interesses e necessidades comuns, facilitando o estreitar das relações.

Da abundância à raridade

Durante décadas, antes dos operadores privados ou da generalização do satélite e do cabo em Portugal, a Televisión Española (TVE) foi uma referência na esfera pública. Em 1998, pouco antes da chegada das redes coaxiais ao interior, onde já era possível sintonizar nove canais terrestres nacionais — os portugueses RTP 1, RTP 2, SIC e TVI, e os espanhóis TVE 1, TVE 2, Antena 3, Tele 5 e Canal + — e alguns regionais — a Televisión de Galicia (TVG) ou o andaluz Canal Sur —, o produtor José Nuno Martins referia que a cultura televisiva dos raianos, habituados ao zapping, era mais avançada que a dos restantes portugueses.

Se na década de 1970, depois do 25 de Novembro, o presidente António Ramalho Eanes só concedeu uma entrevista à TVE depois de a esposa lhe lembrar que era a única televisão que a mãe via em Alcains, sua terra natal, nas cidades espanholas vizinhas havia quem preferisse a música do Rádio Clube Português ou seguisse na então Radiotelevisão Portuguesa a telenovela “Gabriela, Cravo e Canela”. Nas localidades raianas, estas escolhas seriam também ditadas pelos problemas de recepção dos canais nacionais em zonas sombra e com cobertura fraca, ou pela orografia irregular que facilitava a propagação das emissões estrangeiras.

A partir dos anos de 1960, com o alargamento do VHF às províncias fronteiriças, a televisão espanhola, mais tarde também no UHF em que seria transmitido o segundo canal da TVE, tornar-se-ia parte da identidade beirã. Com o dividendo digital a traduzir-se numa larga oferta, o audiovisual espanhol destaca-se agora pela diversidade de estações na Televisão Digital Terrestre (TDT), do nacional ao local, a que se juntam as regionais de primeira geração, criadas entre a década de 1980 e o arranque do século XXI, e os segundos e terceiros canais autónomos.

Rádio e televisão continuam a ignorar a “cortina de cortiça”, mas tecnologia e hábitos de consumo alteraram-se. A par da pouca atenção da comunicação social portuguesa ao outro lado, esta e o hiper-segmentado audiovisual nacional, afunilado no cabo onde quase não tem expressão de proximidade, contribuem para que a oferta em sinal aberto do país vizinho cada vez mais passe despercebida, em particular na televisão por assinatura, prejudicando a percepção e a interacção com as comunidades espanholas mais próximas. Desencontro habitual já retratado na série histórica “La Raya Quebrada”, produzida em 2005 pela TVE, com o apoio da Rádio e Televisão de Portugal (RTP), e que ilustra os oito séculos de avanços e recuos nas relações peninsulares : a expansão ultramarina, o iberismo falhado, o sonho europeísta ou o emergir democrático.

Em contrapartida, desde a década de 1990 que o país sobressai em Espanha graças ao esforço dos governos e dos média das comunidades autónomas em fomentarem o diálogo essencial à superação de medos e preconceitos fruto do desconhecimento mútuo, ao entendimento outrora condicionado pelas fronteiras terrestres e marítimas, ou à criação de oportunidades de cooperação e desenvolvimento que atenuem assimetrias. Depois das emissoras nacionais públicas — “Diálogos 3”, “El Ambigú” e “Trébede” na Radio 3, “Portugaleando” [1] na Radio 5, ou “Mundofonías” na Radio Exterior de Espanha —, e acompanhando o crescente interesse pelo português nas zonas fronteiriças, as pontes hertzianas concentram-se agora nas rádios e televisões locais e regionais da Estremadura ou de Castela e Leão, principais promotores da música, língua e cultura lusas em território espanhol.

A concretização de utopias ibéricas

Em 2002 no encontro “Raia Sem Fronteiras”, em Castelo Branco, e como meio de expressão da especificidade e diversidade ibéricas, o jornalista Francisco Sena Santos propunha que Portugal e Espanha avançassem com um projecto semelhante ao canal franco-alemão Arte. Já Fernando Alves, da TSF, sugeria a criação de uma rádio de fronteira, espécie de janela do interior para o mundo. À falta de articulação entre os dois países neste sentido, em parte devido aos diferentes enquadramentos legais, à estruturação dos sectores audiovisuais e à dimensão das empresas de comunicação, a Estremadura é uma das regiões mais exímias em concretizar estas utopias ibéricas.

O interesse pela cultura portuguesa despertaria no início da década de 1990, com as oportunidades comerciais e laborais a motivarem as entidades públicas e privadas estremenhas. Em 1993, e no âmbito dos protocolos de cooperação com as comissões de coordenação e desenvolvimento regional, dos acordos entre municípios e dos estudos do território ou planos estratégicos comuns, a Junta da Extremadura criava o Gabinete de Iniciativas Transfronteiriças, de forma a intensificar os vínculos com Portugal e a fazer da região território fértil ao conhecimento ou aprendizagem do português, necessidade já consignada no Estatuto de Autonomia.

Beneficiário dos primeiros projectos de apoio comunitário, e ciente da necessidade apontada pela Europa de reforçar a cooperação entre regiões, cedo o governo autónomo estremenho percebeu a importância das políticas de incentivo e dos meios de proximidade para a redução da barreira linguística, uma das condições necessárias ao incremento das relações sociais e económicas com o país vizinho.

Para além da presença regular nos média, o ensino da língua e da cultura portuguesas na Estremadura beneficia de apoio governamental, facilitado pela disponibilidade de financiamento comunitário, maioritariamente através do Programa Operacional de Cooperação Transfronteiriça entre Espanha e Portugal. Orientação política que sobressai em campanhas publicitárias (“Aprende portugués, te abrirá muchas puertas”), plataformas como a Rede de Investigação Transfronteiriça da Estremadura, Centro e Alentejo, publicações académicas sobre o património material e imaterial em comum com o Alentejo e a Beira Interior, ou na valorização de variedades dialectais minoritárias como o chapurreo (português oliventino) e a fala do Vale de Xálima.

Em 1992, a língua portuguesa começou a ser leccionada nos centros educativos estremenhos. Quatro anos depois, aumentava o interesse por esta, hoje presente nas escolas de idiomas e em todos os níveis do ensino regulado, do primário e dos institutos secundários à Universidad de Extremadura (UEx), esta última através do Curso de Filologia Portuguesa, criado em 1999. A partir de 2005, e a seguir ao inglês, o português tornar-se-ia a segunda língua estrangeira mais falada na comunidade autónoma. Na senda do plano Linguaex 2009-2015, o qual visa desenvolver as capacidades linguísticas dos 1,1 milhões de habitantes da região apostando no ensino bilingue e nas segunda e terceira línguas estrangeiras, em 2013 quase 15 mil estremenhos já aprendiam o idioma de Camões, cifra que corresponde a 75 % dos estudantes de português em Espanha.

O interesse por Portugal

Uma das primeiras estações de rádio a corresponder ao interesse por Portugal foi a delegação regional da Onda Cero. O “Desde a raia/Desde la raya” arrancou em 1996, mas seria na viragem do século que o programa em castelhano e português teria o seu ponto alto, sendo então realizado em cadeia com a Rádio Beira Interior (Castelo Branco), Rádio Portalegre, Rádio Elvas, Rádio Voz do Alentejo (Évora) e Rádio Voz da Planície (Beja). Transmitido a partir da Onda Cero Badajoz para as emissoras estremenhas da cadeia generalista, o formato semanal começou por incluir meia hora de debate e entrevista sobre temas como as políticas de transportes, as comunicações, o comércio ou a indústria, dando destaque ao turismo, cultura ou património da Extremadura, Alentejo e Beira-Baixa, bem como à história e tradições das cidades envolvidas. A colaboração reforçou-se em 2005, ano em que foi acordada com a TSF a difusão do “Agora… Acontece !”, versão radiofónica do magazine cultural de Carlos Pinto Coelho.

Ao nível local, em 1998 a Cadena SER de Plasencia tinha já em antena um programa semanal também bilingue. Para além das potencialidades do país vizinho, o espaço radiofónico, a cargo de um docente de português, abordava temas e iniciativas de âmbito transfronteiriço. Por seu turno, uma emissora da província de Cáceres destacar-se-ia com dois programas. No ar desde 2000 na Rádio Interior de Moraleja e Valência de Alcântara, o “Boa Tarde Portugal” propõe-se ensinar a língua portuguesa através da cultura ou da música. Conduzido por uma professora de português, e em antena de segunda a sexta-feira, o espaço de meia hora dá a conhecer a literatura, as tradições ou os sons populares. Já aos sábados, a realizadora promove o magazine “Un paseo por Portugal”, roteiro turístico de 15 minutos com a gastronomia ou o património histórico do país.

A partir de 2006, com o arranque das emissões regulares do Canal Extremadura, outras ferramentas passam a estar ao dispor da promoção de Portugal. Seis anos antes, com a perspectiva do desenvolvimento de uma nova indústria audiovisual, produtoras lusas manifestavam já interesse em fornecer conteúdos ou meios de produção ao futuro operador público regional, interessado nos mercados ibero-americanos. E estudavam estratégias de cooperação com as congéneres estremenhas. Até ao momento, o cenário só se concretizou na TVG, que desde 2007 colabora regularmente com a RTP. Situação a reforçar com a obrigação legal de incrementar a produção com os canais de países onde o português seja língua oficial, e com a eventual entrada das rádios e televisões lusas na TDT galega, tal como aconteceu em Andorra, onde são emitidas a RTP Internacional (RTPI) e a TVI internacional.

Uma das tendências seguidas pelas televisões autónomas espanholas é a de ajustar modelos genéricos às especificidades das suas comunidades. Afectada também pelos cortes orçamentais, mas sem a dívida acumulada de companhias em situação crítica como a Telemadrid ou a já extinta Radiotelevisió Valenciana, a estação estremenha mantém a aposta numa programação que, por via de formatos inovadores, evidencia o património natural e social da região, pondo-o em diálogo com Portugal.

Dos espaços informativos à oferta generalista, as referências ao país no Canal Extremadura tornaram-se comuns depois do aparecimento, em 2009, de programas como o “Soy Vecino” [2]. Durante três anos, este replicou o espírito de bairro, dando a conhecer as povoações rurais encostadas ou não à fronteira, e as histórias das suas figuras mais carismáticas.

O principal parceiro económico

Com um formato adaptado à vocação inter-regional da comunidade autónoma, o Canal Extremadura lança, praticamente em simultâneo, o “En la Raya” [3]. Através de situações do quotidiano, as quatro dezenas de programas apresentados ao longo de quase um ano procuraram mostrar como são as relações dos estremenhos com os portugueses, rematando com propostas de lazer no país do lado.

Com o mesmo enfoque nos “vizinhos mais íntimos”, mas de regresso ao registo conversacional em que surgem as estórias dos que construíram a história mais recente das regiões de fronteira, a seguinte proposta de cariz raiano seria o “2 en Raia” [4]. Entre 2010 e 2012, um português e uma espanhola fizeram-se à estrada com o propósito de descobrir e de dar a conhecer as gentes e os costumes dos dois lados. Formato reinventado no ano seguinte em “A Raia”, roadshow documental do Canal História onde um português e um espanhol descobrem também as histórias das povoações raianas.

Sendo Portugal o principal parceiro económico da Estremadura, e numa comunidade onde o português é sinónimo de emprego, “Exportando Juntos” [5] era uma aposta expectável do canal público ao serviço de uma das regiões menos desenvolvidas de Espanha, mas com um forte tecido industrial. O programa esteve no ar entre 2012 e 2013, tentando reforçar o contacto entre os sectores empresariais dos dois países.

Em antena desde 2012, e munido das ferramentas pedagógicas do Centro Virtual Camões, continua o “Falamos português” [6]. Da pronúncia ao vocabulário, em meia hora o programa, emitido aos sábados, dá a conhecer a língua e a cultura lusas através dos seus costumes e de situações do quotidiano. A série, cuja versão original foi difundida em 2006 e 2007 na RTPI e RTP África, conta com a colaboração da RTP e da Universidade Aberta.

No Canal Extremadura Radio, repete-se o encontro com Portugal (também tentado no “Mestizo Mundo” por via da música étnica), desta feita através do “Lusitania Express” [7]. No programa semanal, emitido aos domingos e realizado em colaboração com o Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões na UEx, viaja-se pela actualidade e cultura do país vizinho.

O diálogo regular de Castela e Leão com Portugal começa no território adjacente. Fundada em 2002 com o intuito de aproximar os dois países, todas as semanas a Rádio Fronteira, de Vilar Formoso, transmite o “Espaço Intercâmbio”. A rubrica sobre a comarca vizinha resulta da colaboração com a Onda Cero de Ciudad Rodrigo. Por seu turno, as notícias de Almeida e dos concelhos vizinhos do distrito da Guarda têm também presença regular naquela rádio local da província de Salamanca.

Para lá dos espaços informativos, a Radio Televisión de Castilla y León atravessa igualmente a fronteira. Criada em 2009 a partir de outras estações privadas, a companhia possui dois canais. Na CyLTV, dedicada à programação regional, destacam-se “Tiempo de Viajar” e “Pueblos y Fronteras”. Emitidos aos fins de semana, ambos os programas procuram descobrir as histórias, os costumes e o património não só das povoações fronteiriças, mas também de Portugal. Já na La 8, especializada em informação local e com desconexões a partir dos centros de produção das capitais de província, a nova aposta é o “Sin Fronteras” [8]. Com estreia agendada para Julho de 2014, o formato, a transmitir na La 8 Salamanca, será produzido pela portuguesa Que Cena. No espaço semanal, empresas ou municípios das regiões norte e centro poderão promover a sua cultura, gastronomia, eventos e locais de interesse.

A vantagem da língua portuguesa

Estando hoje sete das vinte maiores cidades espanholas localizadas nas quatro regiões fronteiriças com Portugal, as quais possuem quase 15 milhões de habitantes e um terço da população do país, o avanço do português em Espanha é uma vantagem a ter em conta não só nas relações ibéricas, mas também no desenvolvimento e integração do audiovisual luso naquele que é um dos grandes mercados europeus do sector.

De forma a que Portugal saiba tirar dividendos adicionais, nomeadamente através da produção e comercialização de conteúdos, há ainda que reconhecer a importância do idioma para lá da diáspora ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, contemplando regiões e estados onde este tem vindo a emergir ou que perceberam o seu papel estratégico a nível mundial, como a China e o Reino Unido. Oportunidade quer para o português, falado por 257 milhões de pessoas, quer para o castelhano, segundo idioma mundial no número de intérpretes : 495 milhões. Juntas, e seguir ao inglês, são as línguas mais utilizadas no ocidente, contando com 752 milhões de falantes nativos.

“Não levantes barreiras, abate-as”, reiterava o filósofo, poeta e ensaísta Agostinho da Silva, um dos maiores defensores da cultura ibérica. Se antes era a marginalidade económica e social a favorecer o desconhecimento, hoje há que reforçar semelhanças e esbater diferenças, também através dos média. Cabe aos “lados e filhos da mesma terra, com o mesmo céu”, como escreveu Miguel Torga, a tarefa de somar culturas e de criar pontes para o futuro e para um iberismo não necessariamente político, antes pragmático…

O titulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.