Análise A nova organização judiciária

Eduardo Maia Costa, magistrado

Era imperioso rever a estrutura atual. O que não se compreende nem se aceita é que se legisle à pressa, sem estudos prévios consistentes, ignorando experiências já consolidadas, e privilegiando, nas opções, critérios economicistas, que mais uma vez redundam em prejuízo do interior do País.

A organização judiciária é um tema de interesse vital para os cidadãos. Na verdade, é através dos tribunais que o Estado assegura a todos uma “tutela jurisdicional efetiva”, ou seja, a garantia de que os seus direitos e interesses legalmente protegidos sejam reconhecidos e efetivados, perante o Estado ou os particulares, bem como a defesa da legalidade democrática. A organização e o funcionamento dos tribunais, a sua gestão, e o seu ordenamento territorial, são elementos decisivos da eficácia do sistema e portanto da sua capacidade de resposta à demanda de justiça em tempo útil e razoável.

A evidente necessidade de um novo modelo

A orgânica judiciária portuguesa baseava-se tradicionalmente na comarca, circunscrição territorial autónoma, onde estava sediado o tribunal, que poderia ser desdobrado em vários juízos, especializados ou não, conforme a densidade populacional ou a complexidade processual.

A divisão territorial norteava-se pelo princípio da justiça de proximidade, procurando-se que a distância ou o isolamento (caso especial das ilhas atlânticas) não fosse obstáculo ao acesso à justiça. Ou seja, o tribunal da comarca estava sempre próximo e esse tribunal tinha competência plena para a administração da justiça, não sendo assim necessário recorrer a outros tribunais, a não ser no caso de recurso, para promover o litígio e obter a decisão da causa.

Este sistema territorial e funcional, extremamente “atomizado” e disperso, tinha no entanto alguns problemas, que se foram acentuando com a passagem do tempo. O modelo da “comarca”, datado da implantação do liberalismo, assente num número excessivo de comarcas (totalizando 231), de dimensão e volume de serviço muito desigual, acabou por se tornar um obstáculo à eficiência dos tribunais.

Por isso, desde há muito que requeria uma reforma de fundo. A explosão da “procura de justiça” que nas últimas quatro décadas se verificou, traduzida numa constante curva ascendente de entrada de processos nos tribunais, nas suas diversas vertentes (cível, criminal, laboral, família e menores, etc.), impunha a procura de um novo modelo, mais flexível e diversificado, quer quanto à divisão territorial, quer quanto à gestão dos tribunais.

É certo que o legislador procurou ao longo dos anos atualizar o sistema, nomeadamente aumentando o número de juízos e alargando os quadros de magistrados, assim como especializando diversos tribunais, com o desdobramento em juízos cíveis e criminais. Sem tais medidas (implementadas entre 1995 e 2000) o sistema teria de todo paralisado, tal o ritmo de crescimento da procura de justiça por parte dos cidadãos e das empresas.

Mas, no fundo, tratava-se de “remendos”, geralmente direcionados para a resposta à massificação da litigância e da pequena/média criminalidade, remendos esses que não tinham condições para instalar um sistema globalmente eficaz e racional. A necessidade de um novo modelo tornou-se praticamente consensual. A complexidade do direito atual, por um lado, impõe uma especialização crescente dos tribunais ; por outro lado, a racionalidade/eficácia do sistema exige um redimensionamento das comarcas, com a sua concentração, e um novo modelo de gestão, mais flexível e ágil para a melhoria do funcionamento dos tribunais, para um melhor aproveitamento dos seus recursos, materiais e humanos.

O “mapa” antes e depois da chegada da “troika”

Este projeto materializou-se num diploma legislativo de 2008, a lei nº 52/2008, de 28-8, que criou um novo “mapa judiciário”, reduzindo a 35 as comarcas, cada uma agrupando tribunais de competência genérica ou especializada, e introduziu um novo sistema de gestão de tribunais em que sobressaía a figura do juiz presidente, com importantes poderes de gestão processual, que lhe permitiam nomeadamente uma avaliação permanente da situação funcional do serviço da comarca e a adoção de meios adequados à simplificação e agilização processuais, à deteção de situações anómalas e a proposta ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) de reafetação de juízes, em ordem a uma redistribuição racional e eficiente do serviço. Em causa não ficava a independência dos juízes, cuja gestão se mantinha entregue ao CSM. Criou-se também a figura do administrador judiciário, a quem cabia, em termos gerais, a gestão dos meios materiais, mas sob a orientação do juiz presidente. Enfim, uma gestão de novo tipo, mais flexível no aproveitamento dos meios e mais responsabilizante de magistrados e funcionários, encabeçada na pessoa do juiz presidente, responsável perante o CSM.

Estava previsto que este modelo fosse implantado progressivamente, tendo sido instaladas inicialmente três comarcas-piloto (Baixo Vouga, Lisboa-Noroeste e Alentejo Litoral), que ainda estão em funcionamento. A ideia era “ensaiar” o sistema nessas comarcas, retirar as lições desse ensaio e avançar gradualmente até englobar a totalidade do território nacional. Inesperadamente, a queda do governo Sócrates levou ao abandono pelo governo atualmente em funções desse projeto. Chegou ainda a ser designado, em Diário da República, o dia 1.12.2011 para a instalação da comarca da Cova da Beira, que agrupava os municípios da Covilhã, Fundão e Belmonte, mas posteriormente essa instalação foi cancelada.

O novo governo tinha um projeto diferente. Na sequência do memorando celebrado com a “troika”, cujas grandes preocupações se dirigiam fundamentalmente para a instalação de um sistema eficaz de cobrança das dívidas, para bem da “economia”, o governo, acossado pelas dificuldades financeiras, e fiel seguidor da receita da austeridade, empenhou-se em procurar soluções assentes essencialmente na redução dos custos da justiça. O caminho escolhido foi o da concentração dos tribunais, com o encerramento “natural” dos de reduzido movimento, situados normalmente no interior do país.

O modelo orgânico de 2008 foi, como se disse, abandonado, apesar de já estar parcialmente implantado e de haver indicadores francamente positivos sobre o funcionamento das comarcas-piloto. Sem que se conheçam quaisquer estudos sobre as razões desse abandono, sem que se conheça qualquer avaliação do modelo ensaiado em 2008 e parcialmente executado, como se disse, o governo atual optou por outro modelo, o que consta da lei nº 63/2013, de 26-8.

Quanto à gestão dos tribunais, o modelo adotado pela lei de 2008 (direção do tribunal pelo juiz-presidente, coadjuvado pelo administrador) foi substituído por um outro, de gestão “colegial”, integrando o “conselho de gestão” o juiz-presidente, o magistrado do ministério público coordenador e o administrador judiciário. Só a experiência dirá da adequação deste tipo de gestão colegial aos objetivos prosseguidos. A colegialidade é, à partida, um bom princípio. Mas ela não pode prejudicar os poderes de direção do juiz-presidente, sem prejuízo evidentemente da autonomia do ministério público.

Uma divisão judiciária decalcada da administrativa

Relativamente ao “mapa judiciário”, com a nova lei, mantém-se a divisão do território nacional em comarcas, mas estas agora coincidem com o distrito administrativo (exceto em Lisboa e Porto, em que os distritos são desdobrados). Pela primeira vez na história de Portugal, decalca-se a divisão judiciária da administrativa. E isto acontece quando o distrito administrativo foi completamente esvaziado das suas competências, precisamente por este governo…

A ideia do redimensionamento das comarcas, alargando significativamente o seu território, é essencialmente correta, porque permite uma racionalização e aproveitamento e flexibilidade na administração dos meios e dos serviços, e uma melhor distribuição dos magistrados, ao mesmo tempo que permite a implementação de uma malha mais densa de tribunais especializados. Mas esse redimensionamento não pode pôr em crise o princípio básico da justiça de proximidade, condição fundamental de acesso à justiça. Ora, o concreto “mapa” aprovado deixa nesse aspeto muitas interrogações, se não mesmo certezas indesejáveis…

Os tribunais (que passarão a chamar-se “secções” do tribunal judicial da sede da comarca/distrito…) serão classificados em : secções de instância central (que poderão ser especializados em cível, criminal, família e menores, trabalho, e comércio) ; de instância local, que podem desdobrar-se em cível e criminal ; e “secções de proximidade”, que servem apenas para prestar informações e “receber papéis”… As secções de instância central cível são competentes para as ações cíveis de valor superior a 50 000 euros ; e as de instância central criminal são competentes para o julgamento de competência do tribunal coletivo ou júri, ou seja dos processos por crimes puníveis com pena superior a 5 anos de prisão.

Para compreender esta complexa orgânica, tomaremos como exemplo o distrito de Castelo Branco. Segundo a “frustrada” reforma de 2008, seriam criadas duas comarcas no distrito : a da Cova da Beira, sediada na Covilhã e que englobaria apenas os municípios da Covilhã, Fundão e Belmonte, e a da Beira Interior Sul, com sede em Castelo Branco, abrangendo todos os restantes municípios do distrito. Agora, a comarca coincide com o distrito e nele serão instalados os seguintes tribunais (aliás, secções) : Castelo Branco fica com toda a instância central cível e criminal, e com parte da secção de família e menores, e trabalho ; a Covilhã fica com a restante parcela do distrito em matéria de família e menores, e de trabalho ; o Fundão foi contemplado com uma secção de instância central : a do comércio, que abrange todo o distrito. Quanto às secções de instância local (por outras palavras, das “pequenas causas”, elas existirão em Castelo Branco, Covilhã, Fundão, Idanha-a-Nova e Oleiros. Penamacor “contenta-se” (?) com uma “secção de proximidade”…

Façamos agora uma ilustração do funcionamento do sistema no distrito. Um cidadão de Castelo Branco tem ao seu dispor todos os tribunais (“secções” !) de que poderá necessitar, com exceção da do comércio, que fica sediada no Fundão. Os covilhanenses terão de se deslocar a Castelo Branco para usufruir da justiça de “instância central”. Já o cidadão do Fundão, para além da pouco provável utilidade que retirará do “benefício” da “secção de comércio”, terá apenas ao seu dispor secções competentes para as causas cíveis não superiores a 50 000 euros, e para os crimes puníveis com pena não superior a 5 anos de prisão. Quando o valor da causa ultrapassar essa quantia ou o crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos, terá de se deslocar a Castelo Branco. Se precisar do “tribunal de família e menores”, terá de ir à Covilhã. O mesmo sucederá nas causas laborais. O cidadão de Penamacor, esse, a única coisa que pode fazer no seu “tribunal” é pedir informações e entregar “papéis”… Quanto ao mais, terá de se deslocar a Castelo Branco, Covilhã, ou Fundão, conforme os casos.

O risco de paralisia de um voluntarismo temerário

Não vale a pena prosseguir com mais exemplos. O efeito de distanciamento provocado pelo novo “mapa judiciário” é evidente. É certo que os transportes são melhores do que há décadas atrás. Mas nem sempre a deslocação é fácil. E as pessoas não moram todas nas sedes dos municípios, onde as ligações são melhores. Acresce que as pessoas a deslocar não são só as partes interessadas, são também as testemunhas e outros intervenientes processuais, cuja deslocação se torna dispendiosa…

O princípio da “justiça de proximidade” e o inerente direito de acesso ao direito sofrem um evidente abalo com esta reforma… Na totalidade do território, fecham 47 tribunais. Daí a natural reação de municípios e regiões afetados, basicamente o interior do País, progressivamente privado de serviços públicos, e agora da própria presença de um dos mais significativos, o serviço de justiça, que representa também a presença da própria soberania do Estado.

Mas um dos aspetos mais graves é o projeto do governo de avançar com a reforma simultaneamente em todo o território nacional, mais uma vez divergindo da anterior reforma, de caráter gradual. Algumas peripécias de percurso (nomeadamente problemas relacionados com a nomeação dos juízes presidentes das comarcas) estão a demonstrar à evidência que tal projeto é irrealizável, sobretudo para uma data tão próxima (1 de setembro próximo), embora a ministra da Justiça já vá reconhecendo que pode haver algum “deslize” no prazo (se for só no prazo…). Esta “pressa” revela um voluntarismo temerário, que pode paralisar por algum tempo o sistema judicial…

Todo este procedimento legislativo se mostra aliás merecedor de críticas. Mais uma vez, infelizmente, se procede a uma reforma estrutural de um setor do Estado sem a realização prévia de estudos sólidos e fundamentados. O voluntarismo e a designação prévia de objetivos a cumprir “custe o que custar” continuam a constituir uma forma de legislar que não pode deixar de dar maus resultados, a prazo mais ou menos curto…

Os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.