Análise Um (quase) desconhecido

Joaquim Candeias da Silva, membro da Academia Portuguesa da História

Há personagens ilustres que marcaram a história do seu tempo e mais particularmente a história de uma localidade. O fundanense Estevão de Sampaio está neste caso. Mas a sua terra continua a ignorá-lo…

Figura ainda mal estudada da história fundanense, tudo indica que Estevão de Sampaio fosse uma pessoa de certo prestígio local nos alvores da chamada Monarquia Dualista ou União Ibérica (1580) e que tenha tido por essa mesma altura um papel determinante no primeiro processo de elevação do lugar do Fundão a vila e sede de concelho. Mas, quem era, afinal, este homem, esse ilustre desconhecido ?

A primeira referência que lhe conhecemos – se não há equívoco entre os diversos homónimos – vem inserida numa carta sebástica de perdão, datada de 26 de Fevereiro de 1566, um perdão régio que lhe foi concedido por ter deixado fugir um preso, quando Estêvão de Sampaio era alcaide pequeno do castelo da vila da Covilhã… Reza assim a dita carta, na parte que mais nos importa, depois de reportados os factos :

«...E eu [el-rei], vendo o que ele suplicante assim me dizer e pedir enviou e querendo lhe fazer graça e mercê, visto um prasme assinado pelo dr. Felipe Antunes, do meu conselho e meu desembargador do Paço e petições (…) hei por bem de lhe perdoar e o relevar da culpa da fugida do preso do castelo de que na sua petição faz menção, pelo modo que declara, e pagará dous mil réis para a [arca da] Piedade ; e porquanto ele pagou os ditos 2$000 réis a Pero Alvres, meu esmoler, mando que daqui em diante não procedais contra ele suplicante, nem o prendais nem mandeis prender, nem lhe façais nem consintais fazer mal nem outro algum desaguisado quando he por razão de lhe fugir o preso no castelo conteudo em sua petição e desta minha carta declarado.»

“A mais honrada aldeia que no reino há”

A carta não o diz, mas parece deduzir-se deste documento que Estêvão de Sampaio, uma vez incriminado e antes de ter suplicado perdão, terá sido demitido da função e terá mesmo deixado a Covilhã, talvez incógnito, para escapar às justiças cíveis. De outro modo não se compreenderia a passagem da carta em que explicitamente se diz «daqui em diante não procedais contra ele suplicante, nem o prendais nem mandeis prender». Isto prova, portanto, que até à data do perdão régio, ele passara a ser um fora da lei, um perseguido, um excluído da sociedade e da elite covilhanense. E este dado é deveras relevante para compreendermos o que mais tarde aconteceu.

Os anos foram passando e de Estêvão Sampaio só voltamos a ter notícia passada cerca de uma década e meia, já no contexto das lutas acesas pela sucessão dinástica entre a facção dos nacionalistas/insurreccionistas, que defendiam a independência do reino a todo o preço, personificada no candidato popular D. António Prior do Crato, ou a dos unionistas/legalistas, que preferiam o poderosíssimo Filipe II de Espanha, neto do nosso rei D. Manuel. A esse tempo o Fundão, como grande parte das populações deste interior beirão, apoiava D. António, tanto mais que o lugar vinha crescendo em riqueza e população, aspirando já à autonomia e separação face à Covilhã.

Com efeito, já em 1569, numa petição ao rei, este lugar alardeava ser «mui grande de mais de 500 vizinhos e muito grande trato e a mais honrada aldeia que no reino há, aonde há dois juizes e um tabelião das notas que há mais de 80 anos que está separado da dita vila [da Covilhã] por autoridade dos reis passados» ; em 1573, numa outra petição, alcançava mais um benefício, o de poder dali em diante cortar a carne no lugar pelo preço por que se cortasse na vila ; e em 1576, numa carta aos mercadores do Fundão, o rei autorizava que tivessem açougue próprio, à sua custa, com a faculdade de elegerem uma pessoa de entre eles anualmente para dirigir a economia do mesmo açougue…

Pois bem, pelo mear de 1580, o clima social e político do Fundão devia andar já bastante agitado e a fervilhar, na expectativa de grandes mudanças… e não terão tardado a chegar aqui as notícias da aclamação de D. António, como rei, em Santarém, a 16 de Junho. Curiosamente, é de 10 de Julho seguinte, através de um registo de casamento ocorrido na matriz do Fundão, que nos volta a aparecer à luz da documentação o nome de Estêvão de Sampaio. Aí, nenhum título funcional lhe vem atribuído ; mas, pouco depois, muita coisa mudava, e o seu nome ia aparecer em grande, iluminando durante largos meses a actividade social e política fundanense. É de crer que a essa data já não seria novo ; porém, além de morador na paróquia de S. Martinho, ele deveria ser pessoa de muita garra, concitando o respeito e a consideração de todo um povo para chegar ao que chegou…

O seu papel na primeira elevação do Fundão a vila

A primeira vez que o Fundão nos aparece referenciado como vila é num registo paroquial de baptismo, datado de 22 de Agosto de 1580, aí se especificando que os intervenientes na cerimónia religiosa eram «todos moradores nesta vila do Fundão». Dois dias antes, o prior ainda registava simplesmente «moradores neste Fundão», com o sentido que antes sempre atribuía de «neste lugar» do Fundão… É certo que, posteriormente (na primeira quinzena de Setembro), ainda foram utilizadas por duas ou três vezes as anteriores fórmulas… mas, a partir de 18 desse mês, a uniformidade é total, passando a ler-se sempre, sem equívocos nem reservas: «nesta Vila» ou « na Vila do Fundão». O que se terá passado? Não sabemos ao certo, mas não é de crer que meia dúzia de fundanenses tenha declarado a sua alforria face ao poderio municipal e institucional da Covilhã sem algum respaldo de legalidade…

Então, tudo nos leva a supor que Estêvão de Sampaio, lembrado talvez dos seus negros tempos de perseguido pelas justiças régias da Covilhã por um crime de que não se considerava culpado e de que humildemente pediu perdão, deve por essa altura ter emergido como o coriféu das liberdades fundanenses. Seguramente que ele esteve na linha da frente dos acontecimentos, pois de outro modo não se compreenderia que tenha passado a figurar publicamente não só como capitão da companhia de ordenanças da nova vila, mas também e sobretudo como o vereador mais velho da nova equipa camarária, o que equivalia à autoridade política máxima da terra, na falta de um juiz de fora (que o Fundão não tinha nem podia ter, por ainda estar sujeito à alçada régia e à municipalidade covilhanense).

A essa data (22 de Agosto), o contexto político dominante nesta área seria, claramente, favorável ao novo rei, aclamado dois meses antes como D. António I, embora ainda não reconhecido a nível nacional e muito menos internacional. Três dias depois, a 25 de Agosto, recebia ele o primeiro e fortíssimo golpe, ao ser derrotado pelas tropas filipinas na batalha de Alcântara. Contudo, isso não impediu que muitas terras do interior lhe continuassem a obedecer. Estranhar-se-á, é certo, porque é que depois da vitória definitiva de Filipe II e da instauração da União Ibérica o Fundão tenha continuado a declarar-se vila… isto porque, de fonte segura, sabemos que tal situação se manteve durante dois anos inteiros (!). De facto, a avaliar pelos registos paroquiais, só a 9 de Setembro de 1582 se deu a alteração, com o regresso e “despromoção” ao antigo estatuto de lugar. Mas essa é outra história…

Ao certo não sabemos o que se terá passado entretanto nos bastidores e nas cúpulas do poder. Poderia ter acontecido uma devassa e alguma intervenção com uso da força. Mas parece que não. Os novos mandantes terão preferido agir com prudência, pois nada mais ficou registado desse tempo sobre o assunto. E o Fundão quinhentista e seiscentista não mais voltou a ser designado como vila, nem voltou a eleger vereadores a partir daí. Só em 1747 !…

O seu papel no chamado “alvoroço judaico”

Muito se falou já desse célebre episódio ocorrido a 22 de Novembro de 1580, o qual chegou a atingir foros de verdadeiro escândalo, com forte intervenção do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. Veja-se, sobre o caso, José Monteiro, “O alvoroço judaico” (em 1940) [1] ; João Mendes Rosa, «O Fundão “vila” em 1580 – Tentâmen de análise do chamado “alvoroço judaico” (em 2004) [2] ; e Maria Antonieta Garcia, Inquisição e independência – Um motim no Fundão, 1580 (em 2006) [3]. Não vou, por isso mesmo, alongar-me aqui nessa matéria.

É ele, Estêvão de Sampaio, quem amotina o povo contra o meirinho da Inquisição, ameaçando este que «lhe tomaria a vara e lha meteria pelo cu acima»; é ele que faz constar que «era tudo engano e era o corregedor da Guarda que vinha a tomar a dita vila» e que manda «arrepicar o sino para matar e injuriar o dito meirinho da Covilhã»; foi ele, enfim, quem num acto de inquestionável heroismo e em risco de vida ergue bem alto a sua voz e os seus punhos em defesa do recente e precário estatuto municipal da sua terra, bem como a liberdade dos perseguidos cristãos novos, contra a força discriminatória da Inquisição e contra o poderio autocrático da Covilhã (ali representado pelo seu meirinho).

Claro que tudo isto, todo este protagonismo, toda esta activa intervenção lhe deve ter acarretado custas e dissabores. Perguntar-nos-ão: como é que então terminou o caso em justiça? Não sabemos, porque não ficou qualquer memória. Por certo que ele deve ter sido preso e condenado. Talvez tenha sido mesmo degredado, porque na documentação paroquial não encontramos mais rasto de tão corajoso capitão. Contudo, pelo que até aqui pudemos averiguar, manda a verdade que se diga que este homem não seria uma pessoa ou um fundanense qualquer. E, a terminar este breve apontamento, ousamos dizer mais: que, decorridos tantos anos sobre os acontecimentos, ele – Estêvão de Sampaio – bem mereceria uma acção pública de reconhecimento na sua terra [4].

Nota final: É conhecido um outro Estêvão de Sampaio, que por então tomar partido pelo Prior do Crato foi preso pelos espanhóis, fugiu para Paris, voltou a ser preso e acabou enforcado em San Lucar de Barrameda em 1603 ; mas esse era dominicano natural de Guimarães e no ano de 1580 estava instalado em Évora… Pelo que, a este propósito, muito haverá decerto a perscrutar na documentação quinhentista, eventualmente pouco remexida…

O titulo, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.

[1] José Monteiro, “O alvoroço judaico”, in O lugar do Fundão nas origens e na restauração de Portugal, Porto, 1940. Reeditado in Ao Redor do Fundão, Fundão, Câmara Municipal do Fundão, 1990, pp. 37-39.
[2] João Mendes Rosa, «O Fundão “vila” em 1580 – Tentâmen de análise do chamado “alvoroço judaico”, in Eburobriga, Fundão, n.º 2, outono-inverno 2004, pp. 57-66.
[3] Maria Antonieta Garcia, Inquisição e Independência – Um motim no Fundão, 1580, edição Alma Azul, Coimbra e Castelo Branco, 2006, 230 p.
[4] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, “Para não esquecer a História”, in Notas de Circunstância 2, 9 de maio de 2014
(http://notasdecircunstancia2.blogspot.pt/).